Pelé: “Hoje, chamam de bullying. Mas na minha época éramos humilhados mesmo”
Uma história de perdas, sacrifício, dificuldades e superação. Essas são algumas palavras que resumem a vida e a carreira do ex-ponteiro da Seleção Brasileiro José Francisco Filho, mais conhecido como o “Pelé do Vôlei”, hoje com 62 anos . Em entrevista à assessoria de imprensa do Minas Tênis Clube, o tricampeão brasileiro com o Fiat/Minas na década de 1980 contou alguns capítulos da sua bonita e inspiradora história.
Aos 5 anos, perdeu o pai e precisou ir para a antiga Febem – hoje Fundação Casa, na época um centro de internação para crianças e adolescentes em situação de abandono ou risco de maus tratos. Aos 12, já trabalhava como trocador de ônibus e, somente aos 15 começou a ter contato com o vôlei, fato que mudou completamente os rumos da sua vida.
Um dos grandes ícones do Brasil no vôlei, Pelé teve rápida ascensão no início da carreira e duas passagens pelo time minastenista, nas décadas de 1970 e 1980, em que conquistou seus principais títulos: tricampeão brasileiro e bicampeão sul-americano. Eleito o melhor atacante da Liga Nacional por sete vezes, também foi vitorioso com a camisa da seleção brasileira: tetracampeão sul-americano, bronze na Copa do Mundo de 1981 e bronze também nos Jogos Pan-americanos de Indianápolis, em 1987. Em 1988, já estava convocado para os Jogos Olímpicos de Seul, mas uma lesão no tornozelo direito, faltando 20 dias para a competição, o deixou de fora do maior evento esportivo do mundo. Ao todo, foram 165 jogos com a camisa verde e amarelo.
Pelé encerrou a sua carreira jogando na Itália, um dos mais fortes campeonatos do mundo, em maio de 1992. Em agosto do mesmo ano, fundou a Escola de Vôlei Pelé, que já formou mais de 10 mil alunos. Fora das quadras, foi assistente técnico do time adulto do Minas e treinador das categorias de base, revelando nomes como Lucarelli, Maurício Borges, Otávio e Flávio. Nos últimos anos, tem se dedicado à política, foi vereador de Belo Horizonte de 2012 a 2016, e está à frente da Secretaria Adjunta de Esportes do Estado desde junho de 2019.
Casado com Yolanda, pai de Rafael e Bárbara, e avô de Sara e Ana Júlia, Pelé é conselheiro do Minas e uma referência no vôlei nacional, como atleta e formador de campeões, além de prova viva da importância do esporte como instrumento de inclusão social.
Confira abaixo a entrevista:
MINAS – Como começou sua carreira no vôlei e até quando você jogou?
O inicio da minha carreira foi muito difícil. Fui interno na Febem (atual Fundação Casa) dos 5 aos 12 anos, perdi meu pai, e minha mãe não tinha como criar os dez filhos sozinha. Antes, a Febem formava cidadão, hoje é uma instituição falida. Na minha época, trabalhávamos e estudávamos. Quando saí, fui trabalhar como trocador e comecei no esporte com 15 anos. Sou grato a esse período por lá, porque eu não tinha onde comer e dormir. Comecei a jogar em 1975, agarrei uma oportunidade que apareceu. Minha irmã jogava vôlei e eu me interessei pelo esporte, às vezes a acompanhava no Olympico e fui chamado pelo técnico Barroso para jogar no Guaíra Clube. Em um ano no Guaíra, me destaquei e fui chamado para o Olympico Club. Também me destaquei nos brasileiros e nos mineiros, e o Minas me chamou. Joguei pelo Clube de 1976 a 80, quando fui para o Atlético. Nessa época, eu trabalhava em um período na Telemig e treinava em outro período. A empresa tinha o projeto “Adote um atleta”, que nos permitia trabalhar meio horário e jogar. Depois, em 1984, quando voltei para o Minas, o presidente Sânzio Mendes dava ênfase ao esporte e então todos podiam apenas jogar. Isso foi fundamental para o time ser tricampeão brasileiro e bicampeão sul-americano. Fiquei no Minas até 87 e depois fui para o time Sadia. Por fim, joguei na Itália, em 90 e 91, e encerrei a minha carreira por lá, em maio de 92.
MINAS – Quais equipes você defendeu, além do Minas?
Joguei também por Guaíra, Olympico Club, Atlético-MG, Sadia e Banca Popolare di Sassari (ITA). Mas o Minas foi o clube que me abriu as portas e que eu joguei por mais tempo. Os maiores técnicos que trabalhei foram no Minas, o Young Wan Sohn e o Pacome. A presença deles foi muito importante na minha carreira, foram pessoas que me ajudaram muito.
MINAS – O que você destacaria da sua experiência no vôlei italiano?
Na época em que joguei na Itália, lá era o voleibol mais forte. Os melhores atletas de vôlei do mundo jogavam na Liga Italiana. O poderio ofensivo das equipes era muito forte. Foi uma experiência muito importante, não só como atleta, mas na minha vida pessoal. Uma cultura diferente para mim e toda a minha família, para a minha esposa Yolanda e meus filhos, que na época eram pequenos.
MINAS – Qual foi o jogo mais importante da sua carreira?
O jogo no Macaranãzinho, em 1984, pela final do brasileiro, entre Fiat/Minas e Atlântica-Boavista. Estávamos perdendo por 2 sets a 0 e viramos para 3 a 2. É um dos jogos mais longos da história, com 4h15min. O time do Atlântica era praticamente a seleção brasileira, com Bernard, Bernadinho, Renan e Badalhoca, e conseguimos desvendá-los dentro do Maracanãzinho lotado.
MINAS – Cite cinco atletas do vôlei brasileiro que, em sua opinião, foram os melhores no período em que você estava na ativa.
Da minha época, cito Renan Dal Zotto, um dos jogadores mais técnicos que já vi jogar; William Carvalho, que tinha uma distribuição excelente; Henrique Bassi, que, na minha opinião, é um dos melhores passadores, eu nunca joguei com outro jogador que tivesse um passe de excelência igual ao dele; Carlão, que tinha um poderio ofensivo muito grande e bloqueava muito bem; e Elberto, porque eu nunca vi um bloqueador igual a ele. De estrangeiros, os melhores que vi foram o cubano Joel Despaigne, que saltava muito e era muito veloz, e o norte-americano Karch Kiraly, que era um jogador completo, atacava bem, sacava bem e bloqueava muito bem.
MINAS – E quais são os cinco melhores da atualidade?
O Leal, o Leon e o Lucarelli são jogadores que têm características parecidas, são saltadores natos, têm um poder de ataque muito grande e passam muito bem. Hoje, temos poucos que fazem as duas funções bem. O levantador Bruninho é o melhor para comandar uma equipe. E o Muserskiy, da Rússia, é um jogador muito alto (2,19m) e tem potencial de alcance. É um jogador equilibrado e muito forte.
MINAS – Dos tempos de jogador, do que você mais sente falta, atualmente?
Eu parei com 36 para 37 anos, acredito que parei no momento certo. Hoje, me perguntam muito se sinto falta daquela época, mas conquistei todos os meus objetivos no esporte, então, não sinto tanta falta. Minha vida, hoje, é estar com a minha família, curtir meus netos e viajar. Meu hobby é estar no sítio que construí, em Matozinhos, onde passo alguns dias da semana. Futuramente, é onde pretendo morar. Graças a Deus, conclui bem as minhas etapas e hoje estou bem com a minha vida.
MINAS – Além de sócio, você é conselheiro do Minas. Como você encara o desafio de ser um representante dos associados, uma vez que é o Conselho Deliberativo que elege e diretoria, aprova suas propostas e as contas semestrais e anuais?
Para mim, é uma honra, porque fui o primeiro negro a jogar no voleibol do Minas e o primeiro negro no Conselho também. A minha trajetória no esporte me deu credibilidade a ser convidado para fazer parte do Conselho e das decisões do Clube. Tenho prazer de ser sócio do Minas, meus filhos foram criados dentro do Clube, e para mim é uma honra e um prazer sentar e discutir as contas, propostas e tudo ligado ao Clube. Tudo que eu consegui no esporte foi proporcionado pelo Minas. Era um sonho poder dar qualidade de vida para minha mãe, meu maior ídolo, e eu consegui. Até hoje o pessoal me para na rua e me pergunta ‘Você lembra de tal jogo?’ Às vezes, nem eu lembro e o público na rua lembra. É uma honra muito grande poder contribuir nas decisões para o Minas. O Clube foi minha vida, onde me destaquei e que abriu as portas do mundo para mim. Hoje, faço esse trabalho voluntário com muito prazer para que o Minas continue sempre crescendo.
MINAS – À frente da Secretaria Adjunta de Esportes desde junho/2019, o que o senhor destaca no trabalho realizado e em andamento? Quais são os planos para o próximo ano?
O vice-governador Paulo Brant me convidou para ser o secretário de esportes e estamos desenvolvendo um trabalho muito bom, dando sequência nas ações principais como, por exemplo, os Jogos Escolares, que envolve 50 mil atletas adolescentes, o Bolsa Atleta e a Geração Esporte e Melhor Geração (terceira idade). Também temos dado sequência em emendas parlamentares, porque é importante ter essas ações dos deputados para fomentar o esporte no nosso estado, por meio dos municípios e entidades e associações esportivas, principalmente, nesse momento difícil em que o estado está. Já faz dois anos que não tem o Jimi, Jogos do Interior de Minas, e o nosso planejamento é voltar com essa competição. Mas, com essa pandemia, o esporte foi nocauteado. Fomos os primeiros a ‘fechar’ e vamos ser os últimos a voltar. Meu sonho é conseguir parceiros para voltar com o Jimi (Jogos do Interior de Minas), vamos continuar lutando no pós-pandemia.
MINAS – Recentemente, o episódio da agressão de policiais que causou a morte de um segurança negro, nos Estados Unidos, gerou protestos em todo o mundo e voltou os holofotes para a questão do racismo. O que você diria para incentivar os jovens negros a não desistirem de seus sonhos?
Vou dar um exemplo meu. Hoje, chamam de bullying, mas na minha época não tinha isso, éramos humilhados mesmo. Sempre pedi sabedoria a Deus para não retrucar as pessoas que me chamavam de macaco e negão, porque, se eu retrucasse, eu perderia todas as minhas oportunidades. Eu levava na ‘brincadeira’ para manter as oportunidades que eu tinha. Passei aos meus filhos também para não ficarem presos a isso. Hoje, todos têm muito mais direitos, a mídia acompanha muito mais, é diferente e todo mundo ‘está de olho’. Diria aos jovens para seguir em frente, mesmo com todas as dificuldades pelo caminho.