Ana Moser: O esporte não pode ser um privilégio
Para começar essa conversa, preciso abordar uma questão pessoal. Sempre me senti uma pessoa privilegiada. E isso sempre me incomodou.
Por exemplo: que mérito tenho por ter nascido no lugar e no momento certos, em uma família que me apoiou e permitiu a descoberta e o desenvolvimento do meu potencial no esporte? Que mérito eu tenho por ter nascido com esse corpo, no qual até o tamanho das mãos favorece à prática do vôlei? Não há mérito em nada disso.
Isso não significa que eu não tenha meu valor. Pelo contrário. O meu mérito está, sim, em ter aproveitado as oportunidades. Em ter trabalhado e me dedicado intensamente para me transformar em uma atleta.
O X da questão está no fato de que nem todos terem oportunidades como as que eu tive. Sei que nem todo mundo vai nascer em uma família ideal, nem contará com um biótipo favorável ao esporte de alto rendimento. Mas todos deveriam ter a oportunidade de tentar. E, mais importante, usufruir dos benefícios do esporte.
O esporte é importante para a formação do ser humano. Costumo dizer que não existe esporte de pobre ou de rico. Existem oportunidades e, infelizmente, no Brasil, elas não são para todos. As classes sociais mais favorecidas podem pagar para praticar atividade física, enquanto as mais carentes, não podem.
Esporte deve ser política pública como ferramenta de provento à saúde e educação para a população. Enquanto isso não ocorrer, é preciso arregaçar as mangas para que sejamos parte da mudança.
É preciso quebrar um paradigma cruel no esporte de base. Esporte para crianças deve ser inclusivo e não voltado somente para aqueles com habilidades natas. Esses representam entre 20 e 30% dos casos. E os outros 70 a 80%? Os menos habilidosos não terão oportunidade de acesso a modalidades esportivas simplesmente porque não são tão bons em executar os movimentos técnicos? É imperioso rever conceitos e evoluir.
Acabamos de encerrar nossa melhor participação em Jogos Olímpicos em número de medalhas. Se melhoramos a cada edição, mesmo indo aos trancos e barrancos, imagine que potência o Brasil seria caso o esporte fosse realmente incentivado na base?
O maior número de medalhas comprovaria a máxima: de quantidade se retira a qualidade. Para quem não acredita, pense no volume de craques de futebol exportados para os grandes times da Europa. Ganhar medalhas é importante, eu bem sei, mas o ponto aqui está nos benefícios às crianças com maior acesso ao esporte. A tal quantidade que não se encaixar na qualidade para o alto rendimento, terá aprendido lições que só o esporte ensina, como resiliência, sociabilidade, coragem e responsabilidade.
É possível provocar essa mudança em escala nacional. E o elo mais importante dessa corrente é o professor de Educação Física. Há 20 anos criei o Instituto Esporte Educação e já capacitamos mais de 50 mil educadores físicos em centenas de cidades de praticamente todos os estados do Brasil.
Para fazer isso, na prática, você precisa ter método e professores treinados. Curiosamente, a pandemia tornou-se um fator de expansão para essa atuação. Usamos as ferramentas da tecnologia de comunicação e desenvolvemos uma metodologia de ensino à distância que nos permitiu ampliar horizontes.
Nesse acompanhamento junto aos professores, buscamos estratégias para não só melhorar as aulas de educação física, para que sejam eficientes e atrativas para os alunos, mas tornar a vivência do esporte educacional mais visível e relevante dentro das escolas.
Em 2021, abriremos mais uma janela para o conhecimento. Assumi a curadoria de um ciclo de palestras de altíssimo nível voltada aos professores de Educação Física. O Liga Nescau Summit 2021 é um investimento direcionado ao educador. O evento ainda seguirá como a maior competição estudantil do Brasil, mas acerta o alvo ao passar a investir na formação do professor de Educação Física e tratar de temas práticos ligados aos desafios da profissão. Como será em formato on-line, grátis e com certificação do IEE, acredito que alcançaremos educadores Brasil afora.
Vivemos um momento de retomada das atividades presenciais, mas os desafios de modelos híbridos ainda se apresentam frente ao cotidiano dos professores. É um mundo novo de possibilidades e caminhos sem volta.
Motivar crianças a praticar atividade física e ensinar valores por meio do esporte sempre será a nossa missão. Incluir meninos e meninas, independentemente do corpo, peso, altura e habilidades é o maior desafio da nossa categoria. E quando conseguimos atingir esse objetivo no dia a dia nas escolas, levamos lições e momentos de alegria que duram a vida toda.
Quando jogamos como um time, a vitória é de todos.
Por Ana Moser, medalhista olímpica, empreendedora social e presidente do Instituto Esporte e Educação